Em março de 2010, depois de intensa mobilização por parte da sociedade civil, o Congresso aprovou uma proposta de emenda constitucional (PEC) incluindo o direito à alimentação na Constituição Federal. Essa conquista tinha um recado claro: é obrigação do Estado garantir uma alimentação saudável e de qualidade para todas as pessoas! Porém, passados dez anos, será que temos o que comemorar?
Essa pergunta me veio à cabeça quando li em jornais duas matérias que se relacionam com esta questão. A primeira envolvia o Ministério de Agricultura, que solicitava uma revisão do Guia Alimentar Brasileiro, principalmente para retirar a classificação que recomenda a redução de alimentos ultraprocessados. E a segunda era a informação de que temos 10,3 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar aguda (ou seja, que passam fome). São três milhões a mais de pessoas em apenas cinco anos, de acordo com o IBGE.
São dados e propostas que batem de frente com a nossa conquista em 2010. Naquela época, me recordo, dizíamos que a partir daquela conquista a alimentação seria vista como direito de todos e dever do Estado. E que o próximo passo era fazer valer esse direito, discutindo sua exigibilidade. O próprio Guia Alimentar, questionado atualmente pelo Ministério de Agricultura, teve sua atual versão construída como parte desse processo de se efetivar o direito humano a alimentação adequada no Brasil.
Trazendo inovações frente a versão anterior, o atual Guia Alimentar, produzido em 2014, teve um olhar mais aprofundado sobre a questão da saúde e também visava atacar o problema do sobrepeso na população. A principal novidade era a classificação dos alimentos em quatro tipos: alimentos in natura (essencialmente partes de plantas ou de animais), alimentos minimamente processados (que não envolvam agregação de substâncias ao alimento original), alimentos processados (que possuem adição de sal ou açúcar para serem mais duráveis, como conservas e compotas), e alimentos ultraprocessados (que são formulações industriais, em geral, com pouco ou nenhum alimento inteiro, como biscoitos, molhos e produtos congelados).
O Guia Alimentar aponta para o uso dos alimentos in natura e minimamente processados, e recomenda que se evite os ultraprocessados. E vai além, dizendo que não só o alimento em si é importante para uma alimentação saudável, como também o modo de preparo. São mudanças que mantinham o país no caminho para combater o problema da obesidade e da má alimentação.
Tanto que, ainda em 2014, o Brasil teve algo a mais para celebrar. A FAO, agência das Nações Unidas para a Alimentação, anunciou em seu relatório que o país acabara de sair do Mapa da Fome.
Com conquistas e avanços, o que ocorreu para que retrocedêssemos nestes últimos cinco anos? Olhando para o orçamento e para as políticas, podemos apontar algumas causas. A primeira delas foi uma redução contínua no investimento para uma alimentação saudável. Políticas como o Programa de aquisição de alimentos (PAA), que compra alimentos diretamente da agricultura familiar para hospitais, escolas e outros equipamentos públicos, tiveram seus recursos reduzidos, e o seu alcance limitado. Com menos investimento, menor a eficácia das políticas.
Aliado a isso, tivemos o fechamento do CONSEA, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Este conselho, recriado em 2003, foi importante para inúmeros avanços na política alimentar e nutricional do país. A própria inclusão do direito à alimentação na Constituição se deu a partir de uma aliança construída neste espaço. O CONSEA também utilizou o atual Guia Alimentar em diálogos para a promoção de políticas públicas que garantissem uma alimentação adequada e saudável.
A extinção do CONSEA, portanto, desestruturou todo o sistema que possibilitou as inúmeras conquistas de anos anteriores. E retirou o país do caminho para a garantia a uma alimentação saudável.
E com todo esse contexto, fica mais fácil entender o aumento no número de pessoas passando fome, assim como o porquê de estarmos voltando ao mapa da Fome. Também se compreende a pressão para a revisão do Guia Alimentar. Ora, sem uma estrutura que possibilite a participação efetiva da sociedade na formulação e monitoramento das políticas públicas para uma alimentação saudável, abre-se um perigoso espaço para lobby e pressões de setores que se beneficiariam com este retrocesso, como é o caso do setor de alimentos ultraprocessados.
Porém, se não há muito o que comemorar frente a retrocessos, existe esperança. Isto porque mesmo diante deste contexto, há uma parte da sociedade que continua ativa no monitoramento e na luta pela defesa do nosso direito a uma alimentação adequada e saudável. Diversas organizações, como a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, e celebridades, como Bela Gil e Rita Lobo, já se manifestaram contrários a este pedido de revisão do Ministério de Agricultura. E uma campanha de apoio ao Guia Alimentar foi iniciada nas redes sociais com o uso da #EuApoiooGuiaAlimentar (para mais informações, veja em guia alimentar.
Desde 2010, a sociedade já demonstrou que a união e a mobilização são fundamentais para a buscarmos a garantia de uma alimentação saudável e adequada a todas as pessoas. Que continuemos juntos e mobilizados, denunciando ameaças e pressionando pela efetivação do nosso direito à alimentação.
#EuApoiooGuiaAlimentar